sexta-feira, 20 de junho de 2008

As "sortes" e outras tradições dos Santos Populares

O povo diz que "o sol baila na manhã de São João". Antigamente, as raparigas solteiras atiravam papelinhos à fogueira, queimavam cardos, punham cravos depois do travesseiro...Queriam saber com quem haviam de casar. Muitos viam-se na água à meia noite para se certificarem de que viveriam mais um ano. Outros colhiam orvalho para curar doenças. Saltar à fogueira também é costume que se vai perdendo. Duas mulheres do Caniço falam-nos destas e de outras tradições dos Santos Populares. Maria José ficava aborrecida porque se abria sempre o papelinho que continha o nome do Santo. Não sabia ler. Era a Rosairinha do Ti João Duarte quem, na véspera de Santo António ou de São João, lhe escrevia os três nomes nos papelinhos. Maria José levantava-se antes do nascer do sol. Sabia o resultado da sorte porque havia feito uma marcação diferente em cada papel. Até que começaram a dizer que havia de casar com um tal Cláudio. Experimentou escrever o nome dele e pronto. Assim quis o santo e o certo é que "comecei a andar para casar no ano para a frente". Sentamo-nos num canto da cozinha. O pão acaba de sair do forno e está abafado em cima da mesa. Maria José do Ti Valentim – é assim que todos a conhecem – tem 67 anos. Não hesita em evocar memórias do passado: "Era uma alegria chegar a este mês. As raparigas juntavam-se todas num bando e faziam as sortes à beira das fogueiras." O objectivo principal era saber quem havia de ser o futuro marido. Santo António é o santo casamenteiro mas São João tem talvez maior tradição. Atribui-lhe o povo fama de namoradeiro. Pelo São Pedro, o último dos Santos a ser festejados, repetem-se as sortes. "Fazia-se três bolos de lama com um grão de trigo. Depois ficava um atrás da porta, um atrás da casa e um debaixo da cama. Se refilasse o trigo no bolo que ficava atrás da porta era uma alegria porque queria dizer que o noivo estava quase chegando. O pior era se fosse atrás da casa porque ainda estava longe."Confessa que no seu caso "foi certo" e diz que certa rapariga chorava o dia inteiro quando a sorte lhe dizia que o noivo haveria de tardar. Ajeita o cabelo branco, meneia a cabeça e continua recordando a azáfama que se vivia em todas as casas do sítio na véspera dos santos populares. As raparigas procuravam "ter as voltas feitas à hora das ave-marias". É quando se acendem as fogueiras pelos cabeços e se ouve ao longe o som dos búzios e o alarido das gentes. "No meu tempo toda a gente fazia um facho. Agora as pessoas já não se importam porque têm outras coisas" , diz-nos Conceição Nóbrega, também de 67 anos. Não interrompe os movimentos ritmados que caracterizam a apanha da erva. A foice move-se com destreza por entre os arbustos e ela acrescenta: "Quem é que não fazia sortes quando eu era nova? Naquele tempo os namoros eram todos desviados. Agora é que andam bem agarradinhos e como elas já sabem, não precisam de fazer as sortes..." Primeiro diz que não tem muita pachorra – "quando se é novo é que se faz tudo com gosto" – mas depois acede a recordar tempos que já lá vão. Fala também na sorte dos papelinhos. Um dia escreveu José ao acaso e afinal...acertou. Ver a sombra Na água lampa Na noite de São João, antes de nascer o sol, quase toda a gente ia até à beira de um poço ver a sua sombra na água. Conceição também ia mas agora já não se importa: "A morte vem quando tem de vir e não tem nada a ver com isso." Dizem que quem não conseguir ver a sua sombra, não há-de chegar ao ano seguinte. É Maria José quem nos conta alguns episódios relacionados com este costume. Em noite de São João, há muitos anos, foi sua irmã Clara, com a filha ao colo, até à beira de um poço. Morrera-lhe a primeira filha ainda bebé e preocupava-a a vida da segunda. Ficou contente quando viu na água o rosto da menina, embrulhada no xaile. Só não viu o seu. "Quando chegou a casa contou à irmã e voltaram lá as duas mas ela tornou a não se ver. Afinal, não chegou ao São João do ano seguinte. Em Março, andava a apanhar comida à volta desse mesmo poço, caiu e morreu." Faz uma pausa. Abre o forno e tira para fora dois bolos doces. Arruma-os em cima da mesa e retoma a conversa. Lembra-se da história da prima Júlia. Uma vez não viu a sua sombra na água mas não ficou muito preocupada: "Preparou todas as suas roupas para quando morresse. Mas afinal quem morreu foi o marido." Também o avô de Maria José disse uma vez não ter visto a sua sombra e "morreu na véspera do Pão-por-Deus".Bochecha de água à espera de um nome Maria José ri-se. Fala na mãe e de como um dia resolveu experimentar determinada sorte. Manda que se tome uma bochecha de água e se aguarde debaixo de uma figueira branca, rezando o Creio-em-Deus-Pai, até ouvir o nome de um rapaz. "Diziam que minha mãe ia casar como o moço da madrinha, que se chamava Valentim, mas ela não gostava nada dele. Nesse dia, foi o primeiro nome que ouviu e ficou tão chateada que nem acabou de rezar. Afinal veio a casar com outro rapaz que também se chamava Valentim." Também havia quem se pusesse atrás da porta à hora das Avé-Marias, com a bochecha de água, à espera de ouvir o nome do futuro marido. Por isso, era uma algazarra de vozes àquela hora...ouviam-se todos os nomes conhecidos, para o caso de alguma rapariga estar com a bochecha à espera. Havia quem fizesse todas as sortes. As mais impacientes escreviam os nomes em três papelinhos mas não esperavam para o dia seguinte. Atiravam dois deles à fogueira. O nome que lhes ficasse na mão era o do pretendente. Lusco-fusco. Fogueiras aqui e ali. Saltar era um ritual obrigatório. Gargalhadas misturavam-se com o som característico do louro e do buxo ao arderam. Comentava-se o tamanho da fogueira em comparação com a dos vizinhos. Mais mato para atear o lume e também umas pinhas, trazidas quando foram às "lampas".Casas e fontes Enfeitadas com "lampas" Durante a tarde da véspera de São João, a rapaziada metia-se pelos pinheirais, subindo ribanceiras à procura de louro, murta e alecrim. Com os ramos destes arbustos enfeitavam-se as janelas, as portas das casas e ainda as fontes. Nestas também se colocavam olhos de cana e palmas. Acreditava-se que as "lampas", noutros locais chamadas "bentas", tinham o poder de afastar os maus olhados e outras desgraças. Na véspera de São Pedro recolhe-se as "lampas", que são queimadas na fogueira. Conceição diz que costumava fazer a sorte dos cardos. É fácil. Basta queimar na fogueira as pontas de três cardos e plantá-los, atribuindo um nome a cada um. Apenas um deles volta a florescer durante a noite. Nunca fez a da moeda. Maria José também não. "Mas uma vez, Cecília e Maria José do Ti Noé atiraram um tostão à fogueira e no dia seguinte o primeiro homem que encontraram foi um João. Ambas vieram a casar com um João..." Histórias que nunca mais acabam. Maria José explica outra sorte: "Põe-se três latas debaixo da cama: uma com flores, outra com água e outra com terra. Ao levantar toca-se numa sem ver. Flores era uma alegria porque quer dizer casamento. Toda a gente queria casar..." Água significa viagem e terra é sinal de morte. "Fui remediadinha, sempre tive que comer e vestir..."Fala-nos já de outro costume. Trata-se de colocar três favas – uma com casca, uma meia descascada e outra nua – debaixo do travesseiro. O objectivo é saber se a pessoa será rica, remediada ou pobre. As sortes não ficam por aqui. Há outras. Algumas com muita originalidade, como a que consiste em colocar um caracol em cima de um pano preto, tapado com uma caixa, a ver que letra há-de fazer durante a noite. Ou segurar uma vela acesa sobre um recipiente com água e esperar que a cera, ao cair, forme um nome. Ou ainda guardar um zangão dentro de uma flor de aboboreira e soltá-lo no dia seguinte, para que indique o lado onde se há-de morar. Deitar um ovo num copo com água, rezar sobre ele o Creio-em-Deus-Pai com uma cruz de alecrim e deixá-lo ao sereno da noite era ritual obrigatório. Em causa, o futuro. "No dia de São João, todas as raparigas iam a casa da minha tia Madalena com o copo para ela explicar o que era." Maria José recorda novamente a irmã. "Aparecia-lhe sempre a porta de um cemitério." A outra aparecia sempre uma casa quadrada, "mas minha tia dizia: casa quanto caibas e bens que não saibas".
Passar num vimeiro Para sarar umbigo Conceição costumava ir ao Garajau no dia de São Pedro, pois "é lampo todo o dia". Pelo São João "só é lampo antes do sol sair." Por isso é bem de madrugada, antes de nascer o sol, que se corre a tomar água das fontes para guardar, a recolher o orvalho que ficou nas plantas para usar como remédio para os olhos ou para as eczemas da pele, a colher plantas para chás, a plantar flores para pegarem mais facilmente ou a carregar de pedras árvore que não dê fruto. Ou ainda a colocar um pouco de cabelo na ponta de uma aboboreira, de um vimeiro ou num olho de cana, para que vá crescendo forte e rápido, ao mesmo tempo que essas plantas. "Ia-se de manhã, antes que a praia enchesse. Era um bando de raparigas. A ti Maria Miranda, que não tinha filhos, é que tinha pachorra de ir mais a gente. Levava-se almoço e depois cada uma dava dois mil e quinhentos para comprar refresco", recorda. Encolhe os ombros. "Era assim!" "Arranjava-se semilhas com atum, bacalhau ou gaiado, cebola e pão e ia-se até aos Reis Magos na noite de São João. Levava-se uma gaita, um machete e ia-se cantando e bailando o caminho todo. Depois para subir isto tudo é que já não havia gana e quase que não se chegava", conta, a certa altura, Maria José. O sol baila na manhã de São José. Assim crê o povo. "Uma vez fui ao cabeço dos Algerozes. É verdade que o sol parece que fazia uma bailadinha, mas não era o baile de oito", recorda Maria José. Era a última coisa. Antes era preciso ver o resultado de todas as sortes. "Quando um bebé tem o umbigo roto, passa-se num vime que fica bom", garante-nos. Deve ser na manhã de São João e só resulta se forem dois jovens a fazê-lo, um João e uma Maria. Explica que é preciso escolher um vime grosso, cortar a meio e passar o bebé três vezes entre as duas partes do vime. Eis o diálogo: "- Toma lá, Maria. – Que me dás, João? – Um menino roto, para me dares um são." O "poço da fonte" era enfeitado com arcos de flores e verduras. Toda a gente lá ia. "Hoje todos têm água em casa e já não se faz isso..." Ir a Santo António da Serra, a São João da Ribeira ou a São Pedro, à Ribeira Brava, não era tão fácil como hoje. Das serras do Caniço até lá eram muitas horas de caminho. Até à Ribeira Brava a viagem tinha de ser de barco. Mas iam e divertiam-se. "É preciso não esquecer de pôr o cravo que se traz da festa de Santo António debaixo do travesseiro. Sonha-se com o rapaz com quem se vai casar",recomenda, à despedida, a senhora Maria José. Lília Mata

Sem comentários: