domingo, 9 de março de 2008

A emigração clandestina e a Ponta do Pargo

Muita da emigração clandestina para a Guiana Inglesa processava-se de Câmara de Lobos. Ao entardecer as embarcações inglesas levantavam ferro do porto do Funchal. Contornando a costa até as imediações de Ponta do Pargo, metiam a bordo tantos quantos lhes convinha para o povoamento daquela possessão equatorial. Há notícia de, em 1846, ter aparecido em S. Vicente, Manuel de Sousa, natural de Câmara de Lobos, dono de alguns barcos de pesca, para levar gente fugida e sem passaporte (ARM, Câmara de S. Vicente, n.c., f. 55). Este indivíduo dedicava-se a aliciar pessoas que quisessem sair clandestinamente para Demerara (Idem, ibidem, f. 57, v.º). Duma lista de emigrantes legais para aquela região, datada de 1845, existe menção a José da silva, solteiro, Francisco da Silva e João gonçalves Aguiar, casados, de Câmara de Lobos; José de Abreu, António da Costa e Maria Rosa, solteiros; António Gomes e mulher, Maria Rosa, naturais do Estreito. Todos os passageiros lavraram um documento notarial em como o armador se comprometia a transportá-los, dar-lhes comida e as provisões necessárias e a deixá-los desembarcar livremente na referida Guiana Inglesa mediante o pagamento de 30.000 reis (ARM, Registos Notariais, n.º 2881, F. 34-38). Não sabemos ao certo quantas pessoas emigraram clandestinamente e acabaram por morrer na possessão inglesa. O certo é que saíram em massa desde 1836 e poucos foram os que regressaram.
Manuel Lopes da Silva, um morador na Quinta Grande, ao regressar de Demerara, em 1857, foi condenado numa multa de 4.768 por trazer algumas mercadorias ilegais. O referido emigrante não contestou a apreensão. A Alfândega intimidou-o para vir tratar das formalidades (ARM, Alfândega do Funchal, 1.º 162, F. 226).
Temos notícia de um testamento lavrado a bordo da embarcação Freitas & Macedo, onde faleceu Francisco Gonçalves de Freitas, natural do Estreito de Câmara de Lobos, quando regressava da Guiana Inglesa, em 1872 (Idem, ibidem, 1.º 164, F. 236). O censo de 1878, menciona um escasso número de ausentes nesta jurisdição, que, como nos quer parecer, era de emigrantes, mas nesse caso, deverá esconder bastante a verdade: Câmara de Lobos - 5; Campanário - 33; curral das Freiras - 34; Estreito - 18 e Quinta Grande - 2 (Estatística de Portugal, Censo de 1878, Lisboa, Imprensa Nacional, 1881)



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Ao Ministério do Reino
2.ª Repartição. N:º 2108 - Illm.º e Exm.º Snr. - Foi-me hontem denunciado que o Bergantim Portuguez "Marianna", que ha mais de quinze dias desafferára do Porto do Funchal, se achava fundeado defronte da freguezia da Ponta do Pargo desta Ilha, e alli tractava de receber a seu bordo colonos.
Apenas recebi esta denuncia ordenei immediatamente ao Commandante do Brigue de Guerra Portuguez "Douro", que mandasse sem perda de tempo uma das suas lanchas á dita Ponta do pargo, e fizesse apprehender o Bergantim no caso de elle se estar occupando no criminoso trafico de que era suspeitado.
O Commandante do Brigue "Douro" mandou logo uma das suas lanchas ao indicado ponto, a qual encontrou effectivamente o Bergantim "Marianna".
Deixarei fallar o Commandante, transcrevendo aqui as proprias palavras da communicação que me dirigio em data de hoje:
"Em consequencia da participação que recebi de V. Exc.ª mandei immediatamente largar a lancha deste Brigue em direitura ao local que me foi indicado, e hontem, pelas nove horas da manhã foi avistado o dito Brigue ao mar da Ponta do Pargo estando atravessado: a lancha foi direita a elle, e logo que foi conhecida pelo Brigue, este navegou, e como havia calma, a lancha a alcançou, tendo feito alguns tirosantes com balla, cahindo uma dellas dentro do Brigue, que felizmente não offendeu pessoa alguma, porem o Brigue não atravessou, nem içou bandeira.
Logo que a lancha atracou ao Brigue, o Aspirante do Batalhão Navalpedro Joze Corrêa, encarregado da expedição, conhecendo que o Brigue conduzia gente sem passaporte, madou mariar para este ancoradouro.

O Capitão não fez resistencia mas devo diser a v. Exc.ª que o Aspirante me participou que o Capitão lhe offerecêra duzentas patacas e outras duzentas para a guarnição da lancha, isto foi tão público, que toda a guarnição o confessa, assim como tambem se offereceo dinheiro a um pratico que eu mandei d'aqui na lancha, tendo a satisfação de dizer a v. Exc.ª , que não só o Aspirante repulsou com a honradez de um Portuguez, mas igual honradez teve toda a tripulação da lancha; ainda depois de isso foi offerecido um saco com moedas d'ouro para o Official se servir do que quizesse, não acceitou, e vendo o Capitão q mais guarnição do brigue que a tripulação da lancha não se seduzia, tentou a tripulação revoltar-se, o que constando ao Aspirante encarregado da lancha, mandou ao Capitão que a sua tripulação fosse para baixo, collocando sentinellas em pontos seguros, e assim veio ao ancoradouro.
Á vista de tudo isto bem se deixa ver que o Brigue conduzia gente sem passaporte, e que procurou todos os meios de seduzir a guarnição da lancha, para se evadir, prova evidente do seu contrabando.
Peço a v. Exc.ª que este negocio seja examinado com todo o cuidado e que se espera por decizão do Governo de Lisboa a quem vou dar parte deste acontecimento."
Logo que o Bergantim "Marianna" chegou a este porto, e o Commandante do Brigue Douro me deo conhecimento da apprehensão, entreguei imediatamente todo o negocio ao Poder Judicial, para o fim de se haver o procedimento que fôr de Lei - Oxalá que pelo Poder Judicial se dê uma lição severa, que sirva de escarmento aos que tão escandalosamente se consagram ao ominoso trafico desta nova especie de escravatura!
Deus Guarde a V. Exc.º - Funchal 10 de Setembro de 1847 - Illm.º e Exm.º Snr. Ministro e Secretario de Estado dos Negocios do Reino - O Governador Civil Joze Silvestre Ribeiro.
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Ao Ministério do Reino
2.ª Repartição -
L.º 3.º - N.º 49 - Illmo e Exmo Snr - Dado que o Brigue "Douro" se acha estacionado no porto desta cidade, tenho feito sempre avisar o seu Commandante da sahida de qualquer navio suspeito de empregar-se na conducção clandestina de emigrados para as colonias ingliezas, e isto mesmo pratiquei por occasião da sahida do bergantim inglez "Rowley" para Demerara no dia 5 do corrente. Nos dias 8 e 9 participou o Commandante que na manhã de 7 uma lancha do Brigue "Douro" aprezionára aquelle bergantim defronte da Ponta do Pargo, porque já tinha a seu bordo sem passaporte dezasseis passageiros tomados na costa da Ilha, além de 18 que levara legalmente d'este porto, achando-se entre elles um desertor do Batalhão dos Caçadores, N.º 6.
Destas participações dei logo conhecimento ao Juiz de direito da Comarca Occidental do funchal, remetendo-lhes por copia authentica, - e isto mesmo communiquei ao Commandante do Brigue.
Como dellas não constasse a distancia em que estava de terra o Bergantim "Rowley" quando fôra aprisionado, exigi que o Commandante do Brigue "Douro" declarasse esta circunstancia; - elle satisfez logo declarando que o "Rowley" estava então distante da terra tres milhas, pouco mais ou menos; - e logo enviei ao dito Juiz do Direito este novo documento.
O consul inglez allegando que o "Rowley" fôra aprisionado a nove ou dez milhas de distancia da terra, requisitou-me a entrega d'essa embarcação para que o Governo Portuguez não tomasse responsabilidade pelas perdas e despesas resultantes da detenção.
Respondi referindo-me ás informações officiaes que tinha e que estando o negocio affecto ao Poder Judicial, só delle dependia libertar o navio, ou declarar boa a presa.
No dia 11 foi essa embarcação desembaraçada por despacho do Juiz de direito.
No mesmo dia o Consul inglez requisitou-me que se fizesse cumprir aquele Despacho. Dei conhecimento delle ao Commandante do "Douro", para não impedir a sahida do "Rowley"; respondi ao Consul que nenhum impedimento se poria á viagem d'aquella embarcação, e ella effectivamente já sahio deste porto.

Dando a V. Exc.ª conta destas occorrencias, espero que seja approvado o procedimento deste Governo Civil.
Deus Guarde a V. Exc.º - Funchal aos 14 de Março de 1848. IlIm.º o Exm.º Snr. Ministro e Secretário de Estado dos Negocios do Reino. O Governador Civil, José Silvestre Ribeiro.

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