Dúlio Freitas, natural do Funchal, estudante na Escola Básica e Secundária Dr. Ângelo Augusto da Silva, sofreu com o 20 de Fevereiro, e conseguiu sobreviver, e hoje enviou-nos o seu relato sobre o que aconteceu naquele fatídico dia.
Dúlio Freitas, aproveita este espaço para agradecer a todos aqueles que após aquele dia o ajudaram, nomeadamente: Os Bombeiros, "os rapazes" que o salvaram, a equipa médica do hospital Dr. Nélio Mendonça, a Rádio Sol através do jornalista e apresentador José Alberto Reis, a família, a Escola de Condução Progresso, os amigos, entre muitos outros.
Da Ponta do Pargo vai um abraço, reconhecendo a força e a determinação que o nosso amigo Dúlio teve naqueles dias.
Deixamos em baixo um texto da autoria do Dúlio sobre tudo aquilo que passou no dia 20 de Fevereiro de 2010.
A fotografia pode ferir susceptibilidades.
Sábado dia 20 de Fevereiro de 2010,
10h da manhã, tinha acabado de acordar com o barulho da chuva e com o meu pai a dizer a minha mãe para ligar urgente para a protecção civil, ai percebi que algo se passava. Foi nesse momento que acordei, vesti-me e fui ajudar o meu pai e o meu irmão, já tinha vindo uma enxurrada, que já tinha trazido algumas arvores, e algumas pedras, já estavam pessoas no beco a tentar limpar o caminho, eu e o meu pai descemos as escadas da nossa casa para ver o que podíamos fazer, mas a água já era muita e a força também, foi nesse momento que estava quase na porta de entrada com o meu pai, que ouvimos o meu irmão a gritar para fugir, de seguida o meu pai começa também a gritar para fugir, foi ai que ouvi um enorme barulho e quando olhei para cima não queria querer naquilo que os meus olhos viam, era como uma onda que vinha por lá abaixo com enormes pedras e troncos inteiros.
Comecei a correr com o meu pai pelas escadas acima, chego ao pátio mais acima onde pensava que estava a salvo e parei, o meu pai mesmo ao meu lado a meio metro de distância de mim. De repente senti uma enorme força a me bater nas costas e a me jogar pelos degraus abaixo, assim que senti aquilo a me bater nas costas senti também o meu peito a bater contra o muro da minha casa, ainda agarrei-me um ferro mas a força da água é inexplicável, e levar com tanta coisa em cima não me consegui agarrar muito tempo, fui logo levado, chego a porta de entrada aos trambolhões, já com aquela lama a entrar pela minha boca a dentro, e pelo nariz, ainda agarrei-me a porta, mas mais uma vez não me aguentei muito tempo, daqui para baixo já fui dentro da ribeira, lembro-me de querer respirar e não conseguir, a força da agua era tanta, que não podia fazer nada para que aquilo deixa-se de entrar na minha boca e no meu nariz. Lembro-me de sentir aquelas pancadas na cabeça, e parecer que alguém me estava a esmagar a cabeça, até que pensei logo ali que iria morrer, cheguei mesmo a pensar: “É isto que é a morte?”, “É isto que é morrer?” “Tenho 19 anos e vou morrer desta maneira”. Pensei na minha família e nos meus amigos.
Logo de seguida sinto-me a passar por cima de uma ponte, e pensei é aqui que vou parar, é aqui que vou ficar, mas não! Levei com aquilo tudo nas costas e lembro-me de cair da ponte abaixo, uma ponte com cerca de 12 metros, senti cair e senti levar com aquilo tudo de novo em cima de mim. Daí para baixo não me recordo de mais nada. Mais abaixo duas pessoas são arrastadas 100/200 metros e infelizmente faleceram ali, naquele percurso.
Dei por mim depois, já parado debaixo de algo em que pensei que fosse terra, fiz força com as costas para sair dali mas aquilo não mexia, quando vi melhor era um carro que estava por cima de mim. Senti algo a escorrer pela minha cara abaixo, quando estava deitado, pensava que era água, mas quando levantei a cabeça deixei de sentir aquilo a me escorrer pela mao, e achei estranho, quando pus novamente a cabeça no chão senti novamente a escorrer, quando levantei a cabeça só sentia o Sangue a correr pela minha cara abaixo, queria limpar os olhos, mas as minhas mãos tinham ainda mais terra que a minha cara.
Mas quando dei por mim vivo, foi uma sensação inexplicável, pensar que tinha morrido e estar vivo, e pensei logo para mim “não posso estar aqui sem fazer nada, tenho de continuar a lutar por mim, pela minha vida , depois de tudo o que passei não me posso deixar ir abaixo agora”. E foi ai que comecei a tirar alguns paus de traz do carro, porque via claridade, tirei alguns paus e algumas pedras, gritei imenso porque via uma casa ao lado, e gritava para ver se alguém me vinha ajudar, mas tive de me rodar de peito para cima e foi ai que vi que a minha perna não mexia, pensava que tinha um pau metido, mas não, agarrei nas calças e vi logo a minha perna a mexer como se não tivesse osso, e quando me rodei, o meu corpo rodou menos a minha perna que continuou virada para traz.
Passado uns 15 minutos de estar a gritar e a tentar sair dali de baixo veio 3 rapazes me ajudar, deu-me um grande alivio, eu pedi por tudo para eles me tirarem dali, lembro-me deles quererem mexer o carro mas lembrei-me que podia ceder e esmagar-me, e disse que não, disse-lhes para abrir um buraco atrás do carro para sair por lá, e foi assim que fizeram, até a parte da cintura saí pelas minhas mãos, mas da cintura para baixo jé teve que ser eles a puxarem, ai já me doía o corpo todo, e quando sai debaixo do carro só via a minha perna dependurada e virada ao contrario. Os rapazes puseram-me numa porta e puseram-me dentro duma casa ate que chegasse os bombeiros, mas não havia estradas para ir lá ter. Só pedia para irem procurar o meu pai, porque pensava que ele tinha sido também arrastado, mas não, o meu pai estava em casa junto com o meu irmão e os vizinhos a minha procura, quando o meu pai me foi dar a mão já não lá estava, pensavam que tinha ficado debaixo do entulho que estava na minha casa, o meu pai ate chegou a meter a cabeça na terra para me encontrar, o meu irmão decide ir pelo ribeiro abaixo, o meu pai agarra-lhe para não ir, a minha mãe gritava para que ele não fosse porque já tinha perdido um filho não queria perder outro, porque isto já se tinha passado há duas horas e já temiam o pior. A certa hora disseram que eu estava vivo, ninguém quis acreditar, pois já
ESTAVA A 3KM DE CASA, e pelo aquele dilúvio abaixo toda gente pensou: “Encontraram o corpo dele, é impossível ele estar vivo”, foi ai que então o meu irmão foi ver se era mesmo eu, novamente agarraram o meu irmão, e não o deixaram ir só, e quando vi o meu irmão a chegar lá, a única coisa que perguntei foi pelo pai, e ele dizia que o pai estava bem e sempre sem acreditar. Um dos rapazes disse-me tempos depois que perguntei uma coisa " Será que já fiz assim tanto mal para merecer isto?" E tive a minha resposta, "Não, tu não nada, se não, não estavas cã agora a falar comigo". Eu estava ali com um frio tremendo, cheio de dores, só sentia sangue a escorrer, vomitei tirei terra do meu nariz que nunca mais acabava, os meus ouvidos estavam como uns tampões. O meu tio chega lá e tirou-me logo a roupa, estava abafado mas aquela roupa estava gelada e tinha um frio tremendo, aí ajudou um pouco a me aquecer.
Mas os bombeiros nunca mais chegavam, pois não havia uma estrada que fosse ter ao local onde eu estava, tinha caído quebradas mais abaixo, e para cima a estrada tinha sido levada, então fui num meio carro de caixa aberta ate uma certa parte, e depois na maca até a ambulância, porque não dava para passar de carro, lembro-me que a ambulância não conseguia encontrar um caminho que chegasse ao hospital, estava tudo rebentado. Eu só queria chegar ao hospital, para que me pudessem ajudar, e me pudessem tirar aquelas dores que eram enormes. Fui levado pela enxurrada as 10h, encontrado as 12h, e entrei no hospital as 15h.
Mas assim que lá entrei foi um grande alivio. Mas tinha tantas dores, lembro-me de levar pontos a sangue frio, sem anestesia, e pedia para levar a anestesia e eles diziam já demos, e só sentia a agulha e a linha a certo momento disse "não quero mais pontos, façam o que quiserem, metam pensos ou outra coisa, mas pontos não.” Fui operado de emergência das 8 até as 01e30 a perna, parti a perna em varias partes e fiquei sem músculo, a perna teve de ser cozida por dentro. Passei uma semana com dores, ninguém me podia virar que só gritava com dores, mesmo levando aquela medicação toda para as dores, não conseguia mexer nada, passei duas semanas com o olho tapado para não afectar a vista, e sem conseguir mexer a perna. Mas eu apenas queria ver o meu pai, pensava que me estavam a esconder a morte dele, só o consegui ver no domingo a noite, pois não conseguiam sair de casa, o meu pai ficou sem os carros e as motas, entre muitas outras coisas, mas como ele diz o mais importante sobrevivi (a minha mãe encontrou várias vezes o meu pai e o meu irmão a chorar, uma vez o meu pai estava a comer e as lágrimas caiam-lhe no prato), a entrada da minha casa era só entulho, o caminho desaparecera, mas ao ver o meu pai foi um grande alivio, consegui falar com o meu irmão antes de ser operado mas ele quando me viu eu disse logo, "Marco, eu não merecia isto" ele só chorava e dizia que tudo iriam correr bem. Ficaram um pouco chocados quando me viram no estado em que fiquei, mas felizmente recuperei bem, e ainda estou a recuperar e ainda tenho muito trabalho pela frente.
Mas lá em casa meu pai tinha uma Nossa Senhora do Monte numa parede e vários santos, um eucalipto rompeu a parede e apenas levou a Nossa Senhora, foi Ela que naquele dia me ajudou, Ela foi atrás para me salvar.
Hoje em dia vivo os meus dias com medo, o medo de me acontecer algo, e que não me posso despedir daqueles que mais gosto, vivo pensando que no futuro quando estiver recuperado haverá certas coisas das quais não poderei fazer, e irei sentir saudades disso, mas o mais importante é que fiquei vivo, com marcações no corpo todo e a perna partida, mas fiquei vivo. Estou ainda na fisioterapia e muito trabalho tenho ainda pela frente e muitas dores ainda por passar, mas tenho a fé que tudo irá correr bem.
Agradeço a toda gente do fundo do meu coração, que se preocupou comigo, que me apoiou naquele preciso momento em que mais precisei, e não tenho mais palavras para vos agradecer, apenas um OBRIGADO do fundo do meu coração, e nunca serão esquecidos, estarão para sempre comigo!
E aprendi uma coisa naquele dia,
por pior que seja a situação ou o problema, nunca desistir, continuar sempre a lutar, porque vale sempre a pena, e irá tudo passar, eu lutei e ainda estou, não sei como, foi mesmo um milagre eu ter ficado vivo, mas também lutei, não me deixai ir abaixo, e agora viverei a minha vida da melhor maneira possível, agarrada com unhas e dentes!